Allah Akbar
Atualizado: 4 de set. de 2020

Na minha adolescência, Chico Buarque, Reinaldo e TE Lawrence eram meus ídolos. Os dois primeiros driblavam bem sua existência no Brasil, mas, e o terceiro? Se viesse ao Brasil, Lawrence conseguiria transitar bem? Os Sete Pilares da Sabedoria não teriam que ser os Sete Pilares da Esperteza? Ele conseguiria dizer sem ficar vermelho, em rodas de conversa que era abstêmio?
Os dois primeiros eram aceitáveis, o Reinaldo jogava pela Atlético Mineiro e não pelo Coríntians ou São Paulo, mas ainda se contornava. Agora, o terceiro era fonte de vermelhidão. Não dava para explicá-lo a ninguém.
Hoje, aos 49 anos, meu amigo Aldo me pede para escrever sobre ele. Em vista do fato de tantos ingleses e até alguns árabes já o terem feito, lanço mão da licença poética, para ver se sai algo.
Quando li seu livro (digo assim porque ele não tem outras produções famosas) não imaginava que viveria emoções semelhantes. De certa forma misteriosa, minha solidão foi parecida com a dele. No auge do meu isolamento, em noites de insônia, abria seu livro, num inglês difícil de entender, cada parágrafo com duas palavras novas, e aquilo se conectava comigo.
Muito tarde na minha vida compreendi que o cobrador do ônibus era apenas um sofredor como eu. Ele também passou por desprezo, solidão e vermelhidões.
E percebi que Lawrence compreendia o sofrimento humano, era um bom guia para se compreender o cidadão comum.Todos heróis anônimos em suas próprias palavras.
Os Sete Pilares da Sabedoria é um clássico sobre experiências insuportáveis.
E dessa forma é uma obra universal. Assim como ele foi a voz daquele estranho exército árabe do deserto, poderia ter sido a voz dos sofredores de nosso país também.
Como se preparar para os críticos literários? Como ouvir perguntas sobre possíveis amantes árabes? Todo o questionamento de nossa integridade?
É por isso que o livro tem tantas palavras difíceis. É humorístico. Uma ironia aos censores. Um desprezo por todos que inevitavelmente vão nos desprezar.
Eu conheço a mente ávida de fatos vergonhosos dos meus leitores, agora, aprendi no deserto a lidar com isso.
Os árabes tem uma boa resposta para os que nos humilham. Nós rimos e respondemos que nossa capacidade de aguentar é dez vezes maior do que a sua de nos humilhar. Estamos destruídos é verdade, mas fazemos isso.
Como tantos grandes escritores e sofredores da história humana, Lawrence era também um humorista. Não era fácil. Aqueles tempos no deserto foram uma experiência psicodélica. E as memórias ruins prevalecem. Mas um soldado chega e informa Feisal que os turcos estão sem cigarros. No meio da batalha Feisal providencia um pacote, escreve “ com meus cumprimentos” e manda entregar aos turcos.
Isso só no deserto. É o mesmo que Leonardo Pareja cantando em cima da caixa d’água do presídio.
No final é o mesmo samba.
O samba da perplexidade.
À certa altura, em seus camelos, eles entram num vale. As montanhas ao lado são impressionantes. Eles começam a falar mais baixo.
O livro é isso. Essas imensas montanhas que nos fazem falar baixo.
Em Damasco era preciso enterrar os soldados turcos mortos. Ele não tinha opção se não botar os turcos ainda vivos para cavar as covas. Antes do serviço terminar, dois dos coveiros turcos tem que ser enterrados.
Isso aí só nos Sete Pilares da Sabedoria.
Lawrence entra num hospital em Damasco. Está escuro. Ele pisa em algo estranho. Aos poucos a vista se acostuma e ele vê o chão repleto de cadáveres.
Isso nunca aconteceu. O problema é o mesmo de Cervantes. Se Le seco el cerebro. O sol do deserto foi demais. É possível que ele achasse mesmo que tinha acontecido, sabe-se lá. É produto de cérebro fervido, de qualquer maneira.
Nem dá para contar direito nossa história.
Veja a emoção de um livro que não pode ser escrito de tanto que nossa mente ferveu. As cicatrizes estão por toda parte nos Sete Pilares.
Lawrence no deserto se perdia. Ele esquecia que era inglês. Certa noite em torno ao fogo, ele se tornou árabe como poucos estrangeiros já se tornaram. Ele decide imitar Auda, um líder local. Os árabes em torno percebem o inusitado da cena (não julgue os árabes idiotas) e olham já meio rindo antes do final. Lawrence vai contando uma história como se algo fosse acontecer,e nada acontece,como nas histórias de Auda, e o pessoal deságua a rir.
O que acontecia na mente de nosso pobre amigo?
Não conheço detalhes de Oxford, ou de quais ingleses ele tivesse em mente, mas ele se envergonhava. Por algum motivo esquecer a Inglaterra era vergonha.
Tudo ferve em Os Sete Pilares da Sabedoria. A morte era um servo que me acompanhava ele diz, a vergonha também eu acho. Ele se perdeu, esqueceu seus valores, ou sabe-se lá o que, e tinha vergonha disso.
Muitos nomes árabes no livro são grafados cada vez de um jeito. Ele não queria se afiliar a nenhum sistema de transliteração.
Talvez uma observação boa, ou resultado de excesso de sol.
O racionalismo e a erudição de Lawrence eram impressionantes.
O início do livro poderia ser um artigo da Enciclopédia Britânica sobre a história árabe.
Ele fazia isso.
Em outros momentos também se vê sua genialidade.
De certa forma foi um gênio da comunicação. Ele conseguia falar com beduínos do deserto, oficiais do exército inglês e adivinhava a mente dos generais turcos.
Como ir de tal lugar para tal lugar se não temos como levar comida suficiente ? Insolúvel para um oficial inglês.Mas não na mente dele. Era possível matar alguns dos camelos.
E assim como isso, outras soluções deram certo.
Mas tudo ferve nos SPS.
O rei árabe mandava cartas para o príncipe Feisal. Lawrence alterava as cartas para bem de sua estratégia.Ele achava que estava dando certo. E deu. Só que o príncipe sabia que ele alterava as cartas.
E assim vai. Uma viagem psicodélica alucinante, onde se vê toda a fragilidade humana.
A minha também. E de tantos outros.
Não há mensagem. Ele se perdeu. Continuou até o final da vida a fazer associações inteligentes, mas não tinha um padrão, como por exemplo o estoicismo. Me parece que ele não sabia direito no que acreditar.
Talves ele visse a si mesmo como um mendigo que aparece no livro.
Lawrence está nu tomando banho numa pequena lagoa. Um andarilho o surpreende. Eles trocam algumas palavras. Depois Lawrence narra « assim como veio partiu, levando suas crenças se é que tinha alguma ».
Fica na minha mente a audácia intelectual.
Tem jogo. Os inimigos pensam. Mas eu também. Pode ser que eu perca. Mas se bobear eu ganho.