Ninguém ( um monólogo de João Ribeiro)
Primeira parte ( a primeira pessoa é Lawrence da Arábia)
Quando volto para a Inglaterra após a primeira guerra sou surpreendido. Sabia que era famoso, mas não tanto. Um jornalista americano tinha me filmado no deserto e feito um filme com o material . Esse filme tinha me tornado o herói mais famoso da primeira guerra.
Mas eu recusei a fama.
Todos se perguntam porque. Jantares, homenagens, cargos, dinheiro. O glamour todo.
Tudo desprezei.
Eis porque.
À certa altura da guerra, era preciso estudar a logística da cidade de Deraa. Fui lá com um amigo meu.
Para nosso azar, alguns soldados turcos nos abordaram. E decidiram me levar preso.
Minha ideia nessa circunstância era declarar-me um circassiano. Uma tribo de pele mais branca.
Mas não pareceu funcionar. Os soldados e o oficial trocaram olhares de quem havia pego peixe grande. Realmente eu era possivelmente o homem mais bem informado do oriente médio.
Mas o oficial turco surpreendeu. Ele teve um desejo de sexo imenso por mim.
Esqueceu a guerra, as informações, as promoções e quis apenas sexo.
O que era melhor do que entregar meus amigos.
Mas em dado momento perco a paciência e o acerto com o joelho.
Aí ele surpreende de novo, mais do que nunca.
Recusado sexualmente, é tomado de ódio. E deseja que eu seja destruído. De novo esquece a guerra. O que importa agora é acabar comigo.
Pra início de conversa, a pele ao lado da barriga me é puxada, e atravessada com uma baioneta.
Depois passam a me chicotear.
Os árabes tinham uma boa ideia. Aguentava-se umas dez chicotadas. Assim não se passa a vergonha da covardia, mas também não se enlouquece lá.
Mas no meu caso não tinha escolha.
Eu procurava gritar só em árabe, para não descobrirem que eu era inglês. Fato que eles provavelmente já sabiam há muito.
Perdi a noção do tempo.
Eles alternavam chicotadas e estupros.
Perdi então a noção de meu próprio corpo. Onde estavam minhas pernas? Estavam amarradas? O que se passava?
Então algo estranho aconteceu. Parecia que eu era espectador daquilo. Não mais ator. Meio como se minha alma saísse do corpo.
Então, já não sei que horas, um deles me chutou. E um outro reclamou. " Agora você o matou!"
Decidiram parar por ali. Apenas um me sussurrou ao ouvido que a porta de seu quarto ficava aberta pra mim.
Perdi os sentidos.
No dia seguinte, ao acordar estava sozinho. Teriam se distraído, pegado no sono?
Catei um caco de vidro, pulei a janela e me vi livre.
Voltei para o deserto, e reencontrei meus amigos.
Aquele exército árabe era muito diferente do exército americano que lutou no Vietnã.
Os americanos eram recém saídos do colégio. A guerra foi para eles uma novidade total. Tanto que muitos enlouqueceram.
Aqueles árabes eram muito experientes. Eles ouviram meu relato, e me disseram que eu deveria continuar seguindo o Corão, e mantendo a modéstia. O dia que esquecesse a modéstia, perderia para meus torturadores.
Por isso recusei a fama.
Mas resolvi abrir uma exceção.
Decidi me permitir publicar um livro.
Procurei o escritor Bernard Shaw para me ajudar.
Ele me recebeu bem e logo entramos numa questão:
Quem era eu? Que personagem ?
Vimos que eu não era inglês nem árabe, nem escritor, nem soldado.
Eu era ninguém. Assim como Ulisses diante do Ciclope.
O livro então não se decidiria.
Uma parte seria um relato histórico, outra parte minhas emoções, outra parte sequer existiu, às vezes elogiaria os árabes, às vezes faria caricaturas, e sempre que possível , evasivas.
No final do livro, falo de meu respeito e gratidão ao general Allenby. Quem leu o livro inteiro sabe que ele era um idiota.
Uma cena do livro é de uma ópera de Wagner.
Outras vezes uso palavras difíceis em excesso. De propósito porque tenho também um lado pedante.
Decidimos que eu assinaria o livro.
Infelizmente, fui assassinado antes de sua publicação.
segunda parte ( eu sou a primeira pessoa)
Uma vez me bateu à porta um mendigo às 11 da noite. O discurso era confuso, parecia-me que ele estava bêbado, pedi que voltasse de dia. Na noite seguinte ele voltou,e o processo foi o mesmo. Na terceira noite, envergonhado, percebi: ele estava morrendo de fome.
Era o mendigo que já não sabia pedir esmolas.
Um caso extremo de mim mesmo.
O meu grande opressor foi o febeapá. Festival de besteiras que assola o país, como dizia Stanislaw Ponte Preta.
Você está apanhando depois de adulto porque não apanhou quando criança; o que você sabe da vida se toma dois anti psicóticos; o que você sabe da China se viveu a vida inteira na casa dos seus pais; a sua palestra não é científica, e assim por diante.
Minha resposta sempre foi uma atitude racional. Essa gente me impõe lugares comuns, eu rebato com lógica.
Você pode acreditar em algo por esse algo fazer sentido, ou por esse algo ser muito repetido.
Aí a base do meu estilo. O sentido e não o lugar comum.
É interessante que na adolescência eu tinha um problema: me achava entendido em filosofia mas a única coisa que eu sabia dizer era que gostava de lógica.
Eu não desconfiava que isso era muito estoico. Muito depois é que vim a descobrir.
Daí o título do meu livro: memórias de um estoico.
Eu como Lawrence, também não sou ninguém.
O maior trauma talvez tenha sido um abuso sofrido. Tinha onze anos apenas, e acordei no dia seguinte meio que zerado.
Depois me zerei mais ao achar que tinha um defeito no pênis.
Muito mal trabalhado na adolescência, mas na idade adulta talvez uma virtude?
Os estoicos eram uma vertente religiosa do pensamento grego, anular-se diante de Deus não seria sabedoria?
Muito longe do hedonismo que hoje predomina, mas uma questão humana.
Você precisa fazer psicanálise para aprender o que você é, o que você quer, ou seria mais sábio aceitar a vontade de Deus? E a partir daí estar satisfeito com o pouco que temos?
terceira parte ( poema de Lawrence traduzido por mim)
Para S.A.
Eu te amei, e por isso liderei essas marés de homens
E deixei meu testamento escrito nas estrelas
Eu pensava ganhar a liberdade, a casa dos sete pilares
E então ser digno de teu sorriso
Quando nos encontrássemos
A morte me acompanhou como um servo pelo caminho
Até estarmos próximos
E cheguei a te ver me esperando
Mas quando você sorriu, meu servo teve ciúmes
E te carregou
Para o silêncio
O amor, fruto do cansaço, apalpou seu corpo
Nossa recompensa!
Mas breve foi
Porque quem te apalpou em seguida foi a terra
E os vermes cegos
Se alimentaram de você
Homens pediram que em sua memória
Construísse uma casa
Mas antes mesmo de acabá-la eu a demoli
E agora, vejo a mediocridade rastejar e impor-se
No que ainda resta de sua dádiva.