O mais tolo dos macacos
O mais tolo dos macacos
O ser humano tem como peculiaridade sua habilidade linguística. Isso o torna provavelmente o mamífero que melhor trabalha em grupo. Porém, paga um preço: a opinião dos outros.
Marco Aurelio disse: “ Boa a tranquilidade que nos vem quando paramos de nos importar com o que dizem. Ou penasm, ou fazem. Apenas com o que fazemos”
Isso é sábio, noto na minha convivência e em minha vida como a opinião alheia inferniza a vida de pessoas com esquizofrenia. No entanto, é possível seguir isso literalmente?
É possível ignorar os outros? Não é. Até porque isso seria contraditório com o princípio da prudência. O retorno que nos dão é fundamental, podemos estar errando (não somos sábios) e podemos estar sendo mal interpretados, e em ambos os casos cabe nos corrigirmos.
A emoção de sermos desprezados é inevitável. Creio que Marco Aurélio aqui, como muito do estoicismo, se refere apenas a fazermos uma pausa após a emoção para refletirmos e percebermos que podemos diminuir o estrago feito.
Mas essa discussão vai muito mais longe. Cabe perceber que há pessoas mais vulneráveis que outras às opiniões alheias. Isso depende provavelmente de muitos fatores. Aqui vou me concentrar num só.
Há pessoas mais relacionais do que outras. O outro não tem força igual sobre todos. Porque há pessoas que projetam sua felicidade nos relacionamentos, e outros que se concentram em abstrações fora desse planeta.
Chu Hsi na China do ano mil por exemplo. Para ele, vejam que semelhança com os estoicos, havia um tal “Li” que era um “princípio”, tanto no sentido de origem como no sentido de essência, do universo. Esse “Li” era para ele algo racional, compatível com a lógica humana.
Assim, esse exemplo é interessante, porque era uma abstração, mas não era Deus. É bom ver que mesmo ateus podem não se concentrar nesse planeta.
Acredito que ele com esse raciocínio conseguia uma espécie de felicidade básica, que o acompanhava sempre ressurgindo, a famosa satisfação dos filósofos chineses.
Vi uma vez um americano que era o exemplo contrário. Não me lembro seu nome, mas ele declarou que o sonho americano era uma ilusão, que é impossível ser feliz, a não ser por efêmeros momentos de poesia.
Isso provavelmente por ele ser muito relacional, e ficar ao sabor dos ventos, só tendo sua “poesia” na medida que a opinião alheia lhe permitia.
Vamos observar que muitas pessoas relacionais produziram excelentes trabalhos de arte. Um discurso apaixonado pelo que quer que seja, é melhor elaborado por alguém relacional do que por alguém que prefere o cosmos.
O indiano Chandra Chatterji em seu livro sobre a escola Nyaya da Índia, fala de um objetivo da filosofia indiana que seria “não ter compulsões “. Acredito que ele esteja aqui sendo coincidente com esse artigo. Pessoas compulsivas geralmente o são com referência a outra pessoa ou a algo como álcool, drogas ou mesmo alguma atividade, mas sempre nesse planeta. Me parece que Chatterji não qualifica uma relação com o cosmos de compulsão. Porque uma pessoa nessas condições aceita qualquer emprego, sem os famosos “likes and dislikes” .
Mas vejam o grande Beethoven. Ele tinha provavelmente uma compulsão por uma atividade musical. Ficava sem comer de tanto que queria compor. Fazia e refazia suas composições na tentativa da perfeição. Ou seja, era relacional com a música, que é desse planeta, e corpórea, e através disso se tornou o grande artista que foi.
Provavelmente se alguém o tivesse obrigado a não mais compor,e sim a lavar pratos, ele teria sido infeliz.
E óbvio, a eterna questão. O amor de uma mulher. Meu amor nunca será desmedido, nem pela mais excepcional das mulheres. Porque não me lanço em relacionamentos. Acredito que o grande amor, aquele do movimento romântico, só possa ser vivido por pessoas relacionais.
E assim sendo, os imortais discursos de amor, grande momento da arte em qualquer lugar que seja, só o fazem pessoas relacionais.
Será que o amor existiria sem a linguagem? Não sei, a antropóloga Jane Goodall se lesse isso talvez se indignasse comigo, e me diria que conheceu chimpanzés dez vezes mais românticos que eu. Mas acho sim que a linguagem tornou o ser humano mais vulnerável às opiniões dos outros.
O cineasta alemão Fassbinder foi criticado por seu pessimismo. Não me lembro se foi ele que declarou sobre si mesmo, ou declararam sobre ele, dizendo que ele considerava todos os relacionamentos humanos fadados ao fracasso. E ele chegou a dizer que “ a morte era mais quente que o amor”, embora eu não saiba em que contexto.
Mas ele era pessoa muito sensível. Talvez sua melhor obra o “Berlin Alexanderplatz”, adaptação para o cinema do romance homônimo de Alfred Doblin, retrate de maneira magistral esse seu pessimismo.
O protagonista , Franz Biberkopf, no início do filme sai da cadeia após quatro anos lá dentro. Inicia então seu périplo por Berlim tentando sobreviver, tanto financeiramente como psicologicamente.
Todas as tentativas de Franz Biberkopf falham. No final, ele termina enlouquecendo.
Pra mim, um dos pontos altos do filme é quando Franz lê um trecho de um poema:” Andarilho solitário pelo tempo e pelo espaço, é melhor a dois “. O poema se refere não a uma pessoa, mas a Jesus. Se Franz Biberkopf fosse um homem religioso, concentrado em Deus e não nesse planeta, teria sobrevivido?
Outro dia estive conversando com uma senhora espírita. Falei sobre os conceitos de Maya e Brahma em Shankara. Ela achou muito parecido com o espiritismo. Esse mundo para eles é ilusório, enquanto que o que realmente importa está, talvez, numa outra dimensão.O que de fato tem semelhança com o pensamento de Shankara. Para ele as relações fazem parte de Maya ( todo o mundo fenomenológico) , enquanto Brahma é uma entidade cósmica, abstrata.
Sempre achei que a maneira não relacional de ser era mais comum no Oriente. Outro dia li uma pesquisa interessante : pediram a pacientes indianos com esquizofrenia que trabalhavam, que falassem sobre seu trabalho. Eles observaram que a própria avaliação da pessoa aparecia seis vezes mais do que a dos patrões. Acredito que se a pesquisa fosse feita no Brasil teríamos outro resultado. Acho que porque os indianos, sendo menos relacionais, são menos vulneráveis à opinião de seus patrões.
Também acho que há uma diferença entre os gêneros. Acredito que as mulheres são mais relacionais.
Interessante aqui de ver uma pesquisa chinesa. Dizem eles que as mulheres chinesas com esquizofrenia reatam suas relações sociais mais facilmente do que os homens.
Talvez por isso o estoicismo atraia mais homens do que mulheres.
Voltando a Marco Aurélio. Para nos atermos apenas ao que fazemos, acredito que não podemos ser relacionais.Temos que ter alguma conecção com o Logos que nos defenda das opiniões alheias.
Vai Marco Aurélio na contra mão de muitos terapeutas. Conheci uma que chegava a dizer que eu não era sociável porque não “precisava” dos outros. Só seria sociável se viesse uma necessidade do fundo da alma de me relacionar.
É óbvia toda a fragilidade dessa pessoa, que sentiu a força inerente às pessoas abstratas, e em desespero de me manter atado a ela veio com esse torto raciocínio.
Tanto estoicos, como filósofos indianos e chineses prezam a amizade. O ponto não é esse. O ponto é não por sua felicidade nas mãos dos outros, ficar vivendo em função de suas relações mundanas e não de sua relação com abstrações, como o Logos por exemplo.
A evolução fez o homem mais frágil, alguns filósofos vieram ajudar. Para total indignação de algumas colegas de esquizofrenia, que já me declararam que eu “ acabo com toda poesia” .
Eu não faço isso. Só deixo a arte para quem entende do assunto, não me meto a fazer o que não sei.