Uma visão darwinística da esquizofrenia
Uma Visão Darwinística da Esquizofrenia
Nesse artigo pretendo sugerir a arte da negociação como importante na recuperação de pacientes com esquizofrenia, e como isso se relaciona com a teoria da evolução de Charles Darwin.
Sou um facilitador de grupos de ajuda mútua, onde convivo com portadores de esquizofrenia que tem, alguns deles, uma boa recuperação de sua doença.
P.A. é um grande exemplo. Ele trabalha em bordéis, esclarecendo essas pessoas sobre doenças venéreas. Qualquer trabalho para um portador é um feito, mas o dele é especial. Ele tem que ser versátil, inteligente, tem que entender a mente das pessoas com as quais trabalha.
Um cafetão por exemplo, pode não gostar de vê-lo ali metendo o bedelho com suas mulheres. Um travesti pode de repente acha-lo preconceituoso. Mas ele consegue transitar pelo meio disso tudo. Consegue até bom relacionamento com essas pessoas.
P.A. é também uma figura estimada nos grupos. Nunca o vi censurar ninguém, nunca o vi querendo ser mais do que alguém.
A. R. também é um bom exemplo. Outro dia eu o ouvi no telefone. Ele negociava o aluguel de um apartamento. Não entendo do ramo imobiliário, mas era interessante ver como ele sabia todas as questões, todos os valores envolvidos, e tinha bastante calma ao fazer tudo isso.
A participação dele nos grupos também é boa. Ele começou tímido, mas hoje poderia facilitar os grupos da mesma maneira que eu.
M.R. também gostaria de citar. Dei uma palestra com ele, onde ele disse que tinha visões. Uma pessoa então perguntou se ele estava vendo algo naquele instante. Eu tinha certeza que não. Mas ele apontou uma cadeira vazia, e disse, estou vendo algo bem ali.
Como ele conseguia dar uma palestra enquanto via algo é extraordinário.
Cito ainda eu mesmo. Tenho uma coleção de trinta palestras, um livro que está vendendo razoavelmente, consegui aprender a falar inglês entre outros.
O que acontece de comum nessas ( e em outras muitas) histórias de recuperação?
Acredito que essas pessoas tem uma habilidade de negociar. Como estudante de estoicismo, vou dizer que eles conseguem escapar do mundo interno, cheio de idiossincrasias, e achar a lógica, que é uma linguagem universal, com a qual conseguem se comunicar.
Mesmo no caso de M. R., ele não negocia com pessoas, e sim com “entidades”, mas consegue manter a calma, ver o que elas querem dizer para ele. Ele não se perde em emoções.
Em conversa com meu psiquiatra, o dr Julio Acurio, chegamos à conclusão de que sair do mundo interno, aquelas coisas que são nossas peculiaridades, que nos dão nossa individualidade, para achar uma linguagem universal, com a qual possamos conversar com pessoas com as quais não temos encontro emocional algum, é talvez a própria cura.
Qualquer um que estude filosofia indiana vai ver que eles se “anulam”. A personalidade some, fica apenas um contato com o cosmos. Ou seja, eles vão mais longe, esquecem até de sua própria humanidade, se vêem realmente cósmicos.
O que faz um bom negociante?
Bom negociante é quem mantém a calma, pensa duas vezes, não se deixa levar por emoções, e diria eu, sobretudo no mundo de hoje, não tenta ser charmoso.
Costumo dizer que aqui em São Paulo, se o consulado americano puser uma caixa na avenida Paulista, com os dizeres “ contribua aqui com o esforço de guerra dos EUA contra o Taliban”, muita gente vai lá e deixa uma nota de cem reais.
Só porque acham os EUA mais charmosos do que os guerrilheiros muçulmanos, perdem cem reais, e ainda ficam contentes.
Os antigos estoicos eram bons negociantes. Dizem que era impossível enganar um sábio, o que é exagero, mas o trânsito deles pelo mundo era provavelmente bom. Porque eles não fingiam. Se a pessoa for honesta consigo mesma, e examinar se está entendendo cem por cento do que estão lhe dizendo, a chance de ser enganada diminui.
Existe uma oposição entre racionalismo, que provê uma boa negociação, e emoções, que atrapalham. A pessoa com esquizofrenia, por múltiplas causas está presa em emoções. Tem mesmo um desespero de fazer contato, e um contato emotivo.
Outro dia vi R. pedindo vinte centavos a todos que passavam. Eu o conheço, ele não precisa desse dinheiro, o que ele precisa é de um encontro emotivo a qualquer custo.
Os delírios e as alucinações levam as pessoas com esquizofrenia a serem muito únicas. Suas peculiaridades são mais fortes do que em qualquer outro grupo humano. O trabalho de esquecer isso, e ver se entendem o que estão lhes dizendo, e depois expressar-se de maneira compreensível, é para eles muito difícil, mas não intransponível.
Foi o que fizeram P. A. e os outros.
O ser humano é um macaco peculiar. Desenvolveu a linguagem. E, tese desse artigo, desenvolveu mais do que qualquer outro primata, a capacidade de negociar. Houve uma seleção de indivíduos bons negociantes.
Se observarmos grupos humanos primitivos, e os compararmos com chimpanzés, uma diferença é flagrante. O ser humano divide a comida muito mais.
Quando alguém caça, a comida vai para todos. Não mais dependendo da força física de cada um, mas sim, nos primórdios, especulo que pela capacidade de negociar.
Alguns dizem que a linguagem humana surgiu para coordenar a caçada. Pode até ser. Mas pelo menos como efeito secundário, ela ampliou e muito, as negociações humanas.
As crianças tem um tom de voz que não ataca ninguém, é desenhado para causar compaixão, e portanto fornecimento de comida. A mesma compaixão acontece com os velhos. Os outros membros do grupo tem que se desdobrar para serem simpáticos. A simpatia advém de mostrarem que querem somente o que precisam, e explicarem isso de maneira calma e racional.
Também é interessante ver como se dão os casamentos no ser humano. Não é o mais forte que ganha as fêmeas. Hoje, com a sociedade ocidental, as pessoas acham que o ser humano se casa por amor. Isso na verdade é raro, na imensa maioria das culturas humanas o casamento é arranjado. Ou seja, para se conseguir uma fêmea é preciso negociar também.
Aí então vemos que a perpetuação do gene explica a esquizofrenia.
O que leva uma pessoa a delirar ou alucinar não discuto nesse artigo. Porém observo que a negociação prejudicada por causa dessas particularidades, leva ao desespero.
Hoje alguém pode dizer: mas meu filho tem tudo garantido, casa, comida etc. Por que tanta aflição?
Porque no passado essa falta de habilidade de negociar levava à morte de fome. Se não consigo dialogar com meus pares, é bem possível que não me dêem nada para comer.
É interessante observar a extrema dificuldade de portadores acharem pares românticos.
O sentimento eles tem, eles sentem atração, e o bom coração também, eles geralmente não querem mal ao sexo oposto. Porém, antes de se conseguir um encontro emotivo, é preciso uma certa racionalidade. E muito mais do que isso. Vamos pensar na sociedade primitiva. Uma fêmea não vai querer alguém que não negocia. Isso pode significar por exemplo a morte de seus filhos. Hoje em dia, a comida está garantida, a pessoa tem uma pensão do pai que garante, mas o sentimento primitivo de ver se o seu par negocia bem está lá. A mulher humana ( e vice versa) é muito sensível para ver se o seu par sabe ou não negociar. O que é trágico para quem tem esquizofrenia.
O problema porém tem solução. É o que discuti com meu psiquiatra. Chega de conversar sobre peculiaridades. Vamos trabalhar uma linguagem comum. Vamos trabalhar para que eu me sinta à vontade em diferentes ambientes. A lógica ajuda muito. Pelo simples fato de que todos tem lógica. E a calma. Sou peculiar, mas sou humano, tenho uma fagulha de Logos ( o deus racional que organiza o universo). Não pertenço apenas à humanidade, pertenço ao cosmos.
Uma mulher pode não entender esse artigo. Mas garanto que se, por outras vias, eu mostrar que sei negociar, ela pode esquecer meu diagnóstico e ter uma relação comigo.
Assim sendo, uma vez mais eu aqui digo que o estudo de alguns filósofos pode ajudar na esquizofrenia.
Vamos ver alguns exemplos.
“ A rainha da Inglaterra chefia uma máfia de reptilianos, oriundos de outros planetas”.
Essa frase tem lógica. Acredito que se for pesquisado na Internet, vai-se achar uma explicação disso. Porém, isso pode ser dito assim, fora dos grupos de ajuda mútua? Dificilmente. A pessoa precisa refrear seu desejo de um encontro intenso, que seria promovido pela concordância numa questão aberta. Precisa pensar na mente do interlocutor.
É interessante a frase, porque não é exatamente um delírio. Mas ela mostra como o universo mental de uma pessoa com esquizofrenia vai se tornando peculiar. A pessoa teria que manter a calma. Dependendo do interlocutor, ele nem sabe o que é a rainha da Inglaterra. O máximo que se poderia dizer, de uma perspectiva racional ( de se fazer entender) geralmente seria “como deve ser rica a rainha da Inglaterra”, ou coisa assim.
“O padre da igreja que frequento é Deus, e me ama”
Quem falou isso, não tirou do nada. Houve percepções, raciocínios. Mas a emoção foi muito longe. O desejo do amor de alguém, o desejo de agradar ao padre e a Deus, não sei, tudo aí influiu muito, a pessoa se perdeu. E nunca vai achar um interlocutor que compartilhe disso. Ou seja, qualquer negociação que essa pessoa comece, vai ser destruída por essa frase. Simplesmente porque o ser humano quer aliar-se a pessoas racionais, não é vantajoso aliar-se a quem se perde em emoções. Naquela antiga divisão da comida, é óbvio que amigos ajudavam amigos.
“ Dentro de nós há dois cães, um mau e um bom, aquele que alimentarmos ganha “
Essa é uma frase aceitável! Por que? Porque quase qualquer um entende a lógica, ela está numa linguagem universal. Não na linguagem cifrada da irmandade das pessoas com esquizofrenia.
Essa é a tese. Colocar um pouco de lado aquilo que é só nosso. Procurar algo universal.
Já dizia Confúcio: “ Converse com ricos e pobres”.